A flexão das palavras compostas é freqüente fonte de dúvida, a qual, entre especialistas, recebe o nome glamoroso de "controvérsia". De fato, há discordância quanto à flexão de certos compostos tanto entre um dicionário e outro quanto entre dicionários e gramáticas. Portanto, daremos aqui apenas algumas recomendações sobre os casos mais freqüentes e notáveis. Vale lembrar, entretanto, que quaisquer argumentos emitidos contra uma dada possibilidade de flexão ou a seu favor serão fortemente baseados em três fatores, a saber:
Apesar de também serem passíveis de flexão, os poucos verbos cuja formação envolve algum tipo de composição não causam problemas, variando apenas sua terminação. É o que acontece, por exemplo, em "(nós) dedo-duramos". Não nos estenderemos, por conseguinte, sobre essa classe gramatical.
Antes de tornarmos às "regras" propriamente ditas, vale observar que, apesar da controvérsia, recorrer a bons dicionários ainda é a forma mais segura de lidar com casos específicos. Se não fazem constar explicitamente as flexões dos compostos, algo muito freqüente, os dicionários irão classificá-los como "comuns de dois gêneros" (usualmente com a abreviatura "2g") e/ou "comuns de dois números" (abreviatura "2n"), indicando que podem assumir qualquer gênero (masculino/feminino) e/ou qualquer número (singular/plural) sem mudança de forma.
A flexão de um substantivo composto dependerá diretamente de sua construção, da seguinte forma:
no caso dos substantivos compostos onomatopaicos (ou seja, aqueles que tentam reproduzir, de forma aproximada, na medida das possibilidades da língua, um som natural), sintagmáticos ou não, a flexão será feita no último elemento. Caso se trate de palavra invariável, ainda assim lhe será adicionado "s" no plural. Justificam-se assim os plurais "quero-queros", "tico-ticos", "bem-te-vis", "tique-taques" e "reco-recos". A forma desses compostos não varia em função do gênero.
Uma exceção aparentemente inexplicável a essa regra é o vocábulo "estou-fraca" (siga o link para saber mais), registrada como invariável pelos dicionários consultados. |
sintagma nominal ou adjetival (isto é, sintagma valendo por um adjetivo): caso o substantivo resulte do empacotamento de um sintagma nominal (ex.: "estrela-do-mar", "verde-claro", "azul-marinho/celeste"e "longa-metragem") ou adjetival (ex.: "bem-bom"), ele se flexiona em número (singular/plural) da maneira como o seu sintagma interno se flexionaria numa frase. Observe, por exemplo, as seguintes frases:
O tubarão é a verdadeira estrela do mar.
Os tubarões são as verdadeiras estrelas do mar.
Não há, aí, por que escrever "... as verdadeiras estrelas **dos mares". Portanto, o plural de "estrela-do-mar" é "estrelas-do-mar". Analogamente, temos os plurais "verdes-claros", "azuis-marinhos/celestes", "longas-metragens" e "bem-bons". Posto de maneira mais formal, o que acontece é que o número do núcleo do sintagma interno ao composto (nos exemplos, "estrela", "verde", "azul", "metragem" e "bom") deverá concordar com o número do composto como um todo. Numa reação em cadeia, quaisquer elementos do sintagma interno que direta ou indiretamente estabeleçam concordância com o núcleo (nos exemplos, "claro", "marinho/celeste" e "longa", mas não "do mar" ou "bem") deverão ser flexionados de acordo.
Na maioria das vezes, não faz sentido pensar em variar o gênero desse tipo de composto, simplesmente por se tratar de gênero puramente gramatical e fixo, como em "longa-metragem" e "bem-bom", sempre masculinos. Entretanto, por vezes, isso é cabível, como em "bom-moço", "bem-vindo", "dedo-duro" e "pão-duro". Nessas vezes, o núcleo do sintagma interno ao composto (nos exemplos, "moço", "vindo", "dedo" e "pão") decidirá: caso seja palavra de gênero variável (apenas "moço" e "vindo"), o gênero do sintagma interno deverá concordar com o gênero do composto como um todo; caso contrário, tratar-se-á de composto comum de dois gêneros. Assim, o feminino de "bom-moço/bem-vindo" é "boa-moça/bem-vinda", enquanto o de "dedo-duro/pão-duro" é "dedo-duro/pão-duro" mesmo. Ou seja, a concordância interna do composto nunca é corrompida, o que condena um compreensível "*dedo-dura/*pão-dura". | |
o adjetivo "verde-claro", bem como vários outros referentes a cores e terminado em adjetivo ("claro"), é derivado por sufixo zero do substantivo "verde-claro", aí aninhado. Flexiona-se, portanto, de forma diferente, variando apenas seu último elemento. Excepcionalmente, o adjetivo "azul-marinho/celeste" é derivado por conversão do substantivo homônimo, sendo portanto invariável. |
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Verbos no infinitivo, mesmo em palavras simples, podem formar substantivos variáveis em número (ex.: o saber/os saberes; o falar/os falares). Naturalmente, infinitivos substantivados podem participar de compostos, como em "pôr-do-sol", e neles funcionar como qualquer outro substantivo. Temos, portanto, o plural "pores-do-sol". |
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O fato de o substantivo ser, na verdade, derivado de um composto sintagmático (ou seja, o fato de haver um composto aninhado no substantivo) pode tornar sua flexão aparentemente excepcional. Veja, por exemplo, "cor-de-rosa" e "surdo-mudez"; |
verbo + objeto direto: caso a estrutura interna do composto seja a de um verbo seguido de objeto direto não-preposicionado (geralmente um simples substantivo), flexiona-se o objeto apenas, se ele permitir flexão. Justificam-se assim os plurais "guarda-chuvas" e "bate-estacas". A forma desses compostos não varia em função do gênero, o que não impede o surgimento de substantivos comuns de dois gêneros, como "guarda-costas" (que coincidentemente também é comum de dois números).
Há muitos substantivos invariáveis com essa estrutura. Nesse caso, entretanto, o objeto fica sempre no plural, esteja o substantivo aplicado no plural ou no singular. É o que acontece, por exemplo, com "pára-quedas", "mata-moscas", "guarda-volumes", "salva-vidas" e "guarda-costas". | |
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É fundamental que o objeto permita flexão. Por exemplo, "topa-tudo" é uma palavra invariável, porque o objeto "tudo" também o é; |
predicado terminado em infinitivo: caso a estrutura interna do composto seja a de um predicado terminando com um verbo (núcleo do predicado) no infinitivo, flexiona-se esse verbo. Justificam-se assim os plurais "bem-falares", "bem-fazeres" e "bem-me-queres". A forma desses compostos não varia em função do gênero;
verbos coordenados por conectivo: caso o composto seja constituído de verbos ligados por conectivo (usualmente "e"), flexiona-se o último elemento. Justifica-se assim o plural "vai-e-vens". A forma desses compostos não varia em função do gênero.
O substantivo "leva-e-traz", invariável, constitui exceção a essa regra, provavelmente por haver uma confusão do som final "-z" com a marca regular de plural ("-s"). |
caso contrário, o substantivo composto será invariável. É o caso, por exemplo, de "faz-de-conta", "bota-fora", "louva-a-deus", "deus-nos-acuda", "lava-a-jato " e "come-quieto". Em tempo, a invariabilidade de forma não impede o surgimento de substantivos comuns de dois gêneros, como "maria-vai-com-as-outras".
no caso dos substantivos compostos não-sintagmáticos por subordinação, apenas o elemento que representa a idéia principal deve ser flexionado, tanto em número quanto em gênero, se possível e necessário (vale a mesma ressalva feita para os compostos baseados em sintagmas nominais/adjetivais). Justificam-se assim as flexões "anos-luz", "palavras-chave", "operárias-padrão", "homens-sanduíche", "salários-família", "verdes-garrafa ", "amarelos-ouro", "auto-escolas ", "auto-estradas ", "garotas-propaganda" e "guerras-relâmpago".
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Atualmente, há uma tendência, pelo menos no português do Brasil, em favor do relaxamento dessa regra, permitindo ainda a flexão do elemento subordinado, mas não a obrigando. O Aurélio já abona, por exemplo, os plurais alternativos "salários-famílias" e "palavras-chaves". Essa tendência pode ser em boa parte explicada por dois motivos, a saber: (i) a dificuldade em se distinguir entre subordinação e coordenação na maioria dos casos e (ii) a gradativa sintagmatização de alguns compostos originalmente não-sintagmáticos. Conseqüentemente, já há vários gramáticos recomendando a variação de ambos os elementos desse tipo de composto como opção mais prática e segura. |
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o adjetivo "verde-garrafa/amarelo-ouro", bem como vários outros referentes a cores e terminando em substantivo ("garrafa/ouro"), é derivado por conversão do substantivo "verde-garrafa/amarelo-ouro", aí aninhado. São, portanto, invariáveis. |
no caso dos substantivos compostos não-sintagmáticos por coordenação, flexionam-se todos os coordenandos já variáveis, exceto verbos. Excepcionalmente, caso o composto seja constituído de coordenandos invariáveis (inclusos aí verbos) repetidos ou opostos, faz-se o plural com adição de "s" ao último elemento apenas. Justificam-se assim os plurais "ave-marias/salve-rainhas" ("ave/salve", como toda interjeição, é invariável), "joões-ninguém" ("ninguém" é invariável), "couves-flores", "lugares-tenentes", "bate-enxuga/bate-não-quara" (verbos nem repetidos, nem opostos), "vai-voltas" (verbos opostos), "pula-pulas" (verbos repetidos) e "oba-obas" (interjeições repetidas). A forma desses compostos não varia em função do gênero.
Embora não seja consenso entre as gramáticas, há quem aceite, especificamente para verbos repetidos, a possibilidade de ambos os elementos variarem. Portanto, alguns aceitam adicionalmente plurais como "corres-corres" e "pulas-pulas". |
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Adjetivos convertidos em substantivos, como na expressão "o movimento dos africano-americanos", mantêm suas propriedades de flexão originais e freqüentemente constituem exceção à presente regra. Compare-a com as regras flexão de adjetivo composto. |
A flexão de um adjetivo composto dependerá diretamente de sua construção, da seguinte forma:
no caso dos adjetivos compostos não-sintagmáticos, tanto por coordenação quanto por subordinação, flexiona-se apenas o último elemento, mas somente se este for um adjetivo já variável. Justificam-se assim os plurais femininos "saias amarelo-ouro/verde-garrafa", "mulheres africano-americanas", "organizações social-democratas" e "assistências médico-dentárias".
Essa regra já abarca a grande maioria dos adjetivos obtidos por conversão de substantivos compostos não-sintagmáticos, como "amarelo-ouro" e "verde-garrafa". Esses adjetivos são invariáveis; enquanto os substantivos originais, não. Trata-se de casos de aninhamento/indireção. |
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Essa regra também contempla um grande número de adjetivos compostos diretos obtidos pela coordenação de dois ou mais substantivos, como "interações usuário-computador", "linhas Rio-São Paulo" e "relações pai-filho". Entretanto a causa primeira da invariabilidade desses adjetivos é o fato de (i) serem obtidos pelo simples truncamento de sintagmas de valor adjetivo ("interações [entre usuário e computador]", "linhas [do/entre Rio para/e São Paulo]" e "relações [entre pai e filho]") e (ii) seus constituintes permanecerem invariáveis nesses sintagmas, independentemente da variação das palavras modificadas ("interações", "linhas" e "relações"). Para saber mais, consulte as regras de flexão de adjetivos sintagmáticos diretos. |
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A exceção mais notável a essa regra é "surdo-mudo", de plural feminino "surdas-mudas". |
no caso dos adjetivos compostos sintagmáticos, deve-se notar que quase sempre se trata de compostos indiretos, derivados de substantivos compostos sintagmáticos. É o que acontece, por exemplo, com os adjetivos "verde-claro" e "pequeno-burguês", derivados dos substantivos homônimos. Nesse caso, a indireção/aninhamento costuma fazer valer a mesma regra dos adjetivos compostos não-sintagmáticos, a saber: flexiona-se apenas o último elemento, mas somente se este for um adjetivo já variável. Temos, portanto, os plurais femininos "saias verde-claras/pessoas pequeno-burguesas", apesar de essas palavras, como substantivos, flexionarem-se diferentemente.
As exceções mais notáveis são "azul-marinho" e "azul-celeste", invariáveis. Portanto: "saias azul-marinho/celeste". Vale lembrar que essas palavras, como substantivos, são variáveis. |
Entretanto, uns poucos adjetivos compostos sintagmáticos não seriam derivados de substantivo composto, como "dedo-duro", "mão-de-vaca", "pão-duro", "fim-de-século" e "cor-de-rosa". Para flexionar esses adjetivos compostos sintagmáticos diretos é preciso analisar sua construção, da seguinte forma:
caso sejam obtidos por um simples truncamento ou cristalização de outros sintagmas de valor adjetivo, mantêm a (in)variabilidade que seus constituintes teriam dentro do sintagma original. Por exemplo, "fim-de-século" pode ser entendido como originário do truncamento do sintagma adjetivo "típico de fim de século". Como o subsintagma "fim de século" se mantém invariável no plural "típicos de fim de século", o adjetivo "fim-de-século" é invariável. Analogamente se verifica a invariabilidade do adjetivo "cor-de-rosa", que pode ser entendido como originário tanto do truncamento do sintagma "da/na cor de rosa" (de todo invariável, como em "saias na cor de rosa"), quanto da cristalização do sintagma de valor adjetivo [cor [de [X]], invariável em "bifes cor de pano de chão molhado" assim como [sabor [X]] é invariável em "balas sabor morango" (essa invariabilidade se explica em boa parte por se tratar de sintagmas nominais sendo aplicados diretamente como modificadores, bem à maneira de uma conversão de substantivo em adjetivo ou como num composto não-sintagmático por subordinação, em que o substantivo modificador fica invariável). Temos, portanto, os plurais femininos "atitudes fim-de-século" e "saias cor-de-rosa".
caso contrário, valem para esses compostos as mesmas regras de flexão de substantivo sintagmático. É o caso de "dedo-duro", "mão-de-vaca", "pão-duro", "bem-vindo", "não-nulo" e tantos outros adjetivos compostos diretos obtidos pelo empacotamento de sintagmas nominais ou adjetivais. Por conseguinte, temos os plurais femininos "meninas dedos-duros/mãos-de-vaca/pães-duros/bem-vindas/não-nulas". Perceba que as regras se aplicam perfeitamente, inclusive no que concerne à variação em gênero.